sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

CAPOEIRA DO SÉCULO XIX

A CAPOEIRA DE OUTRORA, SECULO XIX, PERNAMBUCANA E CARIOCA E SUAS PERSPECTIVAS IDENTITÁRIA E TERRITORIAL E A CAPOEIRA CONSTRUÍDA, SECULO XX, SEM PERSONALIDADE SOCIO CULTURAL.

Mestre Gil Velho - 2008

A Capoeira tem a sua origem ainda muito discutida. Pois, esta perspectiva está atrelada, hoje, aos diversos discursos que vestem sua imagem moderna. E, a tentativa de discutir sua essência, baseada na sua estrutura atual é, muito complicada, pois, esta construção é de idéias e não de práticas sociais. A capoeira atual tem toda sua construção relacionada aos discursos nacionalistas do final do século XIX e começo dos XX. Tendo duas linhas básicas: a carioca com sua ginástica nacional e a baiana com seu Projeto Regional. A capoeira carioca está historicamente imbricada nas "maltas de capoeiras" cariocas, dos 1800, acrescida da “filosofia da malandragem carioca”. A baiana, imbricada na cultura negra baiana, onde é atuante a visão do mundo do candomblé”.

Dentro deste universo interpretativo da origem e identidade da capoeira está a ruptura da capoeira como movimento social, por um lado - que fez parte da construção do contexto cultural, do Rio de Janeiro, com as Maltas de capoeiras carioca e com os Brabos e Valentões do Recife do séc. XIX – e a capoeira sem identidade social, por outro; construída a partir dos discursos intelectuais, tanto o carioca, como o baiano. O baiano; é o discurso que vai se estabelecer como o hegemônico, auxiliado pela construção do método da luta regional do Mestre Bimba.

Para fazermos uma análise sobre esta questão, temos que voltar no tempo e analisar o contexto da realidade sócio-cultural, de espaços contemplados com a existência de registros identitários e territorial da capoeira. Dentro deste olhar, surgem dois espaços capoeiras- o das cidades de Recife e Rio de Janeiro.

Estes dois nichos urbanos eram, neste período, os dois maiores pontos de comunicação com o restante do mundo. Ou seja, eram os grandes centros, no Brasil, de maiores circularidades, no século XIX, de pessoas, idéias, comércio etc. E, este ponto de interação era a zona portuária. Os portos, neste período, eram a conexão com o global. Eles eram os pontos que estavam conectados com a perspectiva globalizante. Comunicavam-se e trocavam idéias com nichos sócio-culturais semelhantes.

No século XIX, diversos movimentos conectados com este universo portuários apresentaram formas de organização identitária e territorial semelhantes: as gangues de rua. Movimentos sociais anárquicos, ou seja, que construíam sua realidade, a partir do indivíduo através da desconstrução do estabelecido. Estes movimentos, neste período, se comunicaram entre si, tendo como ponto de conexão, na época, o porto. Porém, o porto teria que ter algo que produzisse sua conectividade. Ou seja, o motivo desta relação: sua força de espaço sócio-econômico. No Brasil, estes espaços, nesse momento, eram: o Rio de janeiro e Recife. O Rio de janeiro pela imposição de se tornar capital do Reino português que produziu a abertura de seu porto e a emergência de uma diversidade de fatores que ficaram adormecidos durante toda sua existência colonial. Recife, o espaço brasileiro que desde seu início, foi o lugar mais brasileiro do Brasil, foi onde surgiu a perspectiva libertária e revolucionária brasileira. Sempre representou para Portugal o lado anárquico brasileiro, com as suas insurreições que minaram o absolutismo Português. Como a revolução de 1817, que em dois meses fez um ensaio de uma nova nação e provocou a partir daí, cinco anos depois, a ruptura (a independência do Brasil ) com Portugal. Recife, território pertencente à única capitania hereditária em que seu donatário, Duarte Coelho, e sua mulher, Brites de Albuquerque, em 1535, assumiu pessoalmente o espaço. Este fato mostra a raiz da forte personalidade nativista do Pernambucano. Introduz, desde o início, a perspectiva de identidade e da territorialidade, que vão ser o caminho da construção da grande diversidade sócio-cultural pernambucana. Pois, Pernambuco, vai ser o grande centro econômico a navegar na realidade do espaço sócio-econômico do Brasil, nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

A capoeira do século XIX, no Rio com as Maltas de capoeira e em Recife com as gangues de rua dos Brabos e Valentões foram um movimento muito semelhante aos movimentos das gangues de savate em Paris e das maltas de fadistas de Lisboa do século XIX. A semelhança está presente no vestuário, como uso de lenço de seda no pescoço, como no instrumental de combate (navalha, porrete, bengala etc). E, o que mais chama atenção nesta semelhança é que o gestual de luta (comunicação gestual) desses movimentos é também parecido um com o outro, ou seja, os golpes usados na aguerrida comunicação gestual são semelhantes. O que vai diferenciar é a forma de se comunicar no contexto; cada um cria sua sócio-fronteira, através de sua perspectiva identitária e territorial, com espaços personalizados que vão os diferenciar, com seus atores, entre si, no próprio contexto sócio-cultural. Da mesma forma, o conjunto destes espaços de sócio-fronteiras vai produzir uma forma única de personalidade social a diferenciar de unidades socio-culturais semelhantes.

Por volta de 1850, Nova York, Paris, Marseille ,Lisboa, têm registros deste movimentos de gangues de ruas. No Brasil, as cidades do Rio de Janeiro e Recife são as únicas que respondem a estes movimentos globalizados urbanos, através dos movimentos das Maltas de Capoeira Cariocas e no Recife pelas gangues que disputavam os espaços por eles demarcados identitariamente. Desta forma, defendiam todas as formas de manifestação rítmicas que estavam dentro desta sócio-fronteira. Para isto se incorporavam a cada uma delas.

A capoeira vai ter sua presença registrada como grupos de sócio-fronteiras, a partir de meados do século XIX, tanto no Rio de Janeiro como no Recife.

No Rio, ela se apresentou organizada em verdadeiras confrarias denominadas Maltas. Seus nomes variavam conforme a freguesia em se organizavam (espaços de sócio- fronteiras). Assim chamava –se de “cadeira da Senhora” a da freguesia do Santana; de “três cachos” a de Santa Rita ou Flor da Uva; a dos “Franciscanos” a do bairro de São Francisco; por “Flor da Gente” era conhecida a Malta Glória; “Espada”, a da Lapa; a de”Monturo”, a de Santa Rita, também conhecida por Lusitanos; a de “São Jorge” ou “Lança”, a do Campo da Aclamação.

Estas diversas Maltas de capoeira dividiam-se em dois grupos (Nações) rivais: os Nagoas e Goyamus.

Tinham seus sinais característicos e suas saudações típicas. De seu ritual, faziam parte juramento e preces. Tomavam parte de todas as manifestações cívicas e festas populares. Eram vistos durante as paradas, precedidos pelos caxinguelês (aprendizes), gingando à frente dos batalhões durantes as paradas.

No Recife, os grupos de capoeira vão mostrar uma organização semelhante, porém vão estar mais atrelados às manifestações rítmicas. As bandas militares foram as primeiras organizações rítmicas absorvidas pelos espaços iniciais de sócio-fronteiras da capoeira. A partir das Bandas do 4º Batalhão de Artilharia ou Banha Cheirosa e o Hespanha ou Cabeças Secas, do Corpo da Guarda Nacional, os grupos criam duas unidades sócio-fronteiriças: O partido do 4º ou Banha cheirosa e o partido Hespanha ou Cabeças Secas. A partir desta perspectiva identitária territorial a capoeira pernambucana travou uma verdadeira batalha através de suas pernadas, sua ginga solta, aliadas à bengala, ao porrete, à navalha, à faca etc. Sendo o frevo, dos espaços rítmicos os últimos de suas brincadeiras. Ritmo proveniente destas estruturas de bandas e o passo da aguerrida comunicação dos capoeiras.

A Capoeira sem identidade social.

A capoeira do 1800, do Rio e do Recife, morre com advento da República. Inimiga da Capoeira, a República vem com uma proposta de reformas sociais e urbanas, com críticas à organização e à expressão popular da sociedade brasileira, principalmente no que diz respeito à imagem do Brasil português e à mestiçagem étnica e cultural. Sua proposta alternativa seria baseada no modelo cultural europeu republicano, e qualquer coisa que estivesse fora desses princípios era desconsiderada. Sob influência do positivismo europeu, introduz mudanças que vão alterar a estrutura do espaço cultural carioca. Entre essas mudanças estava a alteração da forma da malha urbana, com a destruição do morro do Castelo e a introdução, sobre a nova geoforma, de uma estrutura arquitetônica semelhante ao centro da cidade parisiense, com avenidas largas, ruas ventiladas e arborizadas. Este processo é associado a um grande saneamento de hábitos culturais imposto à força para melhoria da qualidade de vida da cidade carioca, que naquele momento sofria de uma série de males produzidos pelo baixo padrão de infra-estrutura de saneamento existente.

Essas mudanças alteraram os nichos culturais e mudaram a geografia cultural da cidade ao perderem-se espaços de expressões culturais, o que levou a desarticular a forma de organização urbana e quebrar a dinâmica interativa da comunidade que a compunha. Assim, alterou-se o processo que personalizava a capoeira, pois mudou o seu contexto social ao mexer-se em seus elementos essenciais. As maltas desaparecidas são substituídas pela solitária figura do malandro.

A capoeira, das Maltas, do Rio e dos Brabos do Recife, foi desmobilizada em menos de dois anos.
Toda uma história de mais de quarenta anos se desfaz. No Rio, morrem os grupos de capoeiras e aparece a figura do malandro. Malandro é um indivíduo e a Malta; um grupo social.

Daí começa o processo da construção da capoeira esportiva: A capoeira atual. Tendo duas linhas básicas: a carioca com sua ginástica nacional e a baiana com seu Projeto Regional.

A proposta Carioca A Ginástica Nacional
- Capoeira carioca: a "Luta Nacional"; Aníbal Burlamaqui com seu livro, Gymnastica Nacional (capoeiragem) Methodizada e Regrada; Sinhozinho ensinando a "capoeira de sinhô" (uma capoeira para briga de rua), a partir de 1930; Madame Satã e os malandros da Lapa, a partir de aproximadamente 1920. Esta proposta - "capoeira carioca" - está historicamente imbricada nas "maltas de capoeiras" cariocas, dos 1800s, acrescida da "filosofia da malandragem carioca" que já se tornara popular através das letras de conhecidos sambas.

A proposta Baiana Projeto Regional
- Capoeira baiana: um "projeto regional"; Jorge Amado com seus romances e personagens da "cultura negra baiana"; mestre Bimba e sua "capoeira regional"; os valentões e desordeiros da "era de 1922", e jogadores mais "lúdicos" como Samuel Querido-de-Deus e outros. Esta proposta - "capoeira baiana" - estava imbricada na cultura negra baiana, onde é atuante a visão do mundo do candomblé.

A idéia baiana vai ser a hegemônica, apesar de que em Salvador não tenha registro de capoeira como movimento social. Talvez isto tenha facilitado a construção desta proposta de capoeira, que chega aos dias de hoje, espalhada no Mundo todo. Porém, hoje já começa a apresentar resistências em determinado contexto, pois sua construção é toda artificial.; Carregada de mitificação, reinvenção de tradições e de discursos, próprios de qualquer proposta de construção racionalizada que esconde a fragilidade de sua personalidade sócio- cultural.


GRUPO MALTA SENZALA


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